Thursday, February 08, 2007








O Amado e Odiado, Gregório de Matos: O Boca do Inferno


"O homem existe para ser superado"
(Nietzsche).

O artista existe para superar o mundo, ou melhor, para superar o mundo artístico que nele reside, porque a arte existe para ser superior a ela. Ela é uma evolução do tempo no espaço em que vive o artista em sua sociedade, pois aquele que critica, critica por que consegue ver o que se encontra do outro lado da ponte. A arte só será arte quando for crítica de si e do universo que a cerca, Gregório de Matos e Guerra, nascido em Salvador-BA, em 1636, nos mostrou, com sua boca de brasa, as várias fases e facetas de sua vida num país recém-descoberto, onde nem mesmo se poderia falar de conceito de "literatura" nem tampouco do "Movimento Barroco", e o que mais se exigia era uma descrição do que propriamente uma narração, pois a forma para uma narrativa de complexidade ficcional carecia, sendo pouca para a terra então descoberta. Daí uma quantidade enorme de cronistas a fim de darem notícias aos europeus do Novo Mundo.

Devido aos fatos de sua época, Gregório, não estufara o peito gritando-se de bom literato introdutor disto ou daquilo, escrevia apenas, entre uns bordeis e o cárcere. Mas, o que importa na fase reflexiva (como assim preferem alguns críticos) é a língua afiada, para não dizer lapidada, de um Gregório de Matos introspectivo, balanceando suas experiências existenciais:

"Queixa-se o poeta em que o mundo vai errado, e querendo emendá-lo o tem por empresa dificultosa.

Soneto

Carregado de mim ando no mundo,
e o grande peso embarga-me as passadas,
que como ando por vias desusadas,
faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.
O remédio será seguir o imundo
caminho, onde dos mais vejo as pisadas,
que as bestas andam juntas mais ornadas,
do que anda só o engenho mais profundo
não é fácil viver entre os insanos,
erra, quem presumir que sabe tudo,
se o atalho não soube dos seus danos.
O prudente varão há de ser mudo,
que é melhor neste mundo em mar de enganos
ser louco cos demais, que ser sisudo."
Ou quando nos grita em seus tercetos:
"Eu sou aquele, que os passados anos,
cantei na minha lira maldizente
torpezas do Brasil, vícios, e enganos.

(...)

Arda Baiona, e todo o mundo arda,
que, a quem de profissão falta à verdade,
nunca a Dominga das verdades tarda."



A poesia Barroca portuguesa difere do Barroco na época do Brasil - Colônia, as condições se contrastavam, a expansão do europeu colonizador favorecia o seu enriquecimento à custa do açúcar brasileiro. Enquanto que pelo o outro lado surge o colonizado e o seu principal representante, o poeta Gregório de Matos, que dos recônditos baianos satiriza criticando a realidade da província com sua maneira mordaz e despudorada, bem à moda brasileira, como numa valorização de sua terra que começava a nascer, é aí que a literatura Barroca surge como um cano de escape para realidade da época, ainda assim, restrita a uma elite muito pequena e culta. Nesse contexto nasce o Barroco brasileiro, aos moldes portugueses, é claro, mas muito diferente da ostencividade e da pompa que foi o modelo Barroco europeu: enquanto um era refinado o outro era violento, havia a mão-de-obra escrava e a perseguição de índios. E a literatura que era produzida no Brasil - Colônia ou era de cunho satírico ou de cunho moralista e religioso ou até mesmo servia para combater a mentalidade atrasada da época. Tal literatura surge no Brasil pelo esforço próprio da poesia de Gregório de Matos, Bento Teixeira, Botelho de Oliveira e Frei Itaparica, e na prosa de Padre António Vieira, Sebastião da Rocha Pitta e Nuno Marques Pereira.

Pode-se dizer que Gregório de Matos foi o primeiro poeta genuinamente brasileiro, possuidor da ginga de um capoeirista e a malandragem de um passista de samba que com a força do verbo de um "trio-elétrico" inseriu gírias, utilizou termos indígenas e palavrões que lhe renderam o apelido de Boca do Inferno. Características que o difere e muito do modelo Barroco europeu: enquanto o europeu era comedido e bem comportado, o Barroco brasileiro era atrevido. Gregório conseguiu, assim, ser tanto amado, por ser galanteador de mulatas e de mulheres viúvas ou casadas e freirinhas travessas, quanto odiado por aqueles que dirigiam a então província da Bahia com unhas de ferro, como nos deixa bem claro a ojeriza dos governantes de sua época, devido a sua "língua de fogo", como por exemplo, neste mote que aqui se segue seguido de sua glosa:


Mote


De dous ff se compõe
esta cidade a meu ver
um furtar, outro foder.

Glosa



Replicou-lhe o direito,
e quem o recopiou
com dous ff o explicou
por estar feito, e bem feito:
por bem Digesto, e Colheito
só com os dous ff o expõe,
e assim quem os olhos põe
no trato, que aqui se encerra,
há de dizer, que esta terra
de dous ff se compõe.
Se de dous ff composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta,
e quero um tostão perder,
que isso há de preverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
esta cidade a meu ver.
Provo a conjetura já
prontamente como um brinco:
Bahia tem letras cinco
que são BAHIA:
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder."
Ou contribuindo com seu Humor feroz a uma freira que passava:


"A outra freira, que satirizando a delgada fisionomia do poeta lhe chamou picaflor.

Décima

Se pica-flor me chamais,
pica-flor aceito ser,
mas resta agora saber,
se no nome que me dais,
meteis a flor, que guardais
no passarinho melhor!
Se me dais este favor,
sendo só de mim o Pica,
e o mais vosso, claro fica,
que fico então Pica-flor."

Ou satirizando ainda mais, agora com termos chulos:

"Teve o poeta notícia, que Sebastião da Rocha Pitta, sendo rapaz, se estragava com Brites:

Décima

Brás pastor inda donzelo,
querendo descabaçar-se,
viu Betica a recrear-se
vinda ao prado de amarelo:
e tendo duro o pinguelo,
foi lho metendo já nu,
fossando como Tatu:
gritou Brites, inda bem,
que tudo sofre, quem tem
rachadura junto ao cu."


Contam os biógrafos de Gregório que é uma lástima biografar o autêntico e polêmico autor do Barroco brasileiro. Boa parte da vida deste baiano ficou envolta em sombras e mistérios, senão fosse a pertinácia de Fernando da Rocha Peres que vasculhou arquivos e mais arquivos, tanto brasileiros quanto portugueses, e seria quase ou, talvez, impossível a nossa leitura deste tão grande e importante poeta Seiscentista. No entanto, Fernando da Rocha Peres, peca com suas contemplações preconceituosas sobre a vida do poeta maldito quando esteve na faculdade de Coimbra, Portugal lecionando o então chamado "curso de leis" onde lá depois de formado (1661) conhecera Micaela de Andrade, filha do desembargador Lourenço Saraiva de Carvalho e de dona Britis de Andrade. O pouco que se sabe da vida do poeta com dona Micaela é que ela não lhe deixara filhos e o deixou viúvo em 7 de agosto de 1678, ainda em Portugal.

Segundo o seu biógrafo Fernando da Rocha Peres, o poeta baiano "Gregório de Matos e Guerra era filho de Gregório de Matos e de Maria da Guerra. Além do filho poeta, o casal ainda teve Pedro e Eusébio. Do primeiro pouco se sabe ou nada se sabe, do segundo informações dizem ter-se tornado hábil orador religioso sob o nome de frei Eusébio da Soledade." E assim continua o seu biógrafo FRP. "No entanto sabe-se que o poeta Gregório tivera uma filha bastarda de nome Francisca, batizada a 17 de julho de 1674 em Lisboa." Tal informação encontrei fundamentada em seu genealogista Jorge de Moser e que foi divulgada pelo biógrafo FRP que acrescenta em tom preconceituoso: "A MENINA ERA UMA NEGRA OU MULATA QUE TALVEZ FOSSE FILHA DE UMA ESCRAVA OU ALFORRIADA, OU UMA MULHER DE SAGUE MOURO, etc."

O quebra-cabeça é intrigante na vida de Gregório de Matos, mas o que mais interessa é a sua vida poética, polêmica e marginal - desafiadora. Sendo original e irreverente, "o mostro do Barroco brasileiro" chocou a sociedade denunciando a falsa moral e o desvalor baiano de sua época, ignorando políticos e religiosos. Segundo estudos biográficos o ano de 1661 foi agitado para o poeta. Depois de formado em Direito o poeta vai a procura de emprego e em novembro do mesmo ano D. Afonso VI, rei de Portugal distribuíra uma carta para que se divulgasse e descobrissem mais sobre a vida de um jovem de 25 anos, brasileiro e candidato ao cargo de magistratura portuguesa. Ainda segundo os biógrafos, tal carta foi muito favorável para que se descobrisse mais sobre a vida do poeta e sem ela não teríamos quase nada para compor as peças do quebra-cabeça biográfico.

Trechos da Carta*. "Diogo de Aragão Pereira fidalgo da casa de sua Magestade morador nesta cidade de idade de sessenta e sete anos testemunha jurada ao Santos Evangelhos em que pos sua mão direita e prometeu dizer verdade do costume, disse nada e perguntado ele testemunha pelo conteúdo do primeiro item da provisão de Sua Magestade disse que conhece ao bacharel Gregório de Matos e Guerra e sabe que é natural desta cidade e filho legitimo de Gregório de Matos e de sua mulher Maria da Guerra e não tem raça de judeu e perguntado pelo segundo item disse que não tem raça de cristão novo e perguntado pelo terceiro item disse que sabe que não tem raça de mouro e perguntado pelo quarto item disse que sabe que não tem raça de mulato e seu pai tem servido ofícios públicos nobres e perguntado pelo sexto disse que sabe não ter raça de judeu, mouro ou cristão novo nem que descende deles, antes sabe que seus irmãos são religiosos na Companhia de Jesus na província deste Estado e perguntado pelo sétimo item disse que não sabe que haja autos alguns de sua qualidade e limpeza para os ofícios da Inquisição ou hábitos da ordem militares (...) o dito bacharel tem talento e partes para servir sua Magestade e perguntado pelo décimo item disse que nesta cidade viveu sempre o dito bacharel, e bem honestamente (...) o dito bacharel quando foi desta cidade era solteiro e agora ouviu dizer que casara em Lisboa com uma filha de um desembargador já defunto a que não sabe e al não disse nem nada foi perguntado (...) e eu André Teixeira de Mendonça escrivão da Ouvidoria Geral, o escrevi ao Desembargador A. Soares D’aragão Pereira". (FRP, "documentos...", p.59)


De volta aos Trópicos, já como Bacharel em Direito, o poeta não teve uma vida muito tranqüila, casa-se pela segunda vez em 1691 com D. Maria do Povo e em 1694 é deportado para Angola devido as suas brigas com os poderosos de sua província. Em solo Africano descreve o poeta: "Terra maldita, e infesta,/triste, honrosa, escura" e chega a rimar escura com "sepultura", onde vê-se nitidamente um poeta desgostoso com a vida, é a sua fase de "poeta do desterro", onde segundo os críticos, e não aos meus olhos, perde o poeta a sua identidade.

Creio ser esta, a fase reflexiva, como já havia afirmado a fase mais madura do poeta, como nos diz nestes trechos: "Aqui onde o meu desejo/ debalde busca seu fim,/ e sempre me acho sem mim/ quando me busco" . Gregório de Matos retorna ao Brasil e aqui morre em Pernambuco no ano de 1696, onde, ironicamente está enterrado no cemitério dos Padres Capuchinhos, até depois de morto Gregório de Matos conseguiu ser irreverente.

O mistério continuaria ainda mais vivo senão fosse a Academia Brasileira de Letras que com a ajuda de seu biógrafo Pedro Calmon, teríamos, apenas, alguns poemas espalhados aqui e ali, entre uma coletânea e outra.

Contudo o nosso poeta Boca do Inferno, Gregório de Matos, nos deixou um legado imenso tanto para história brasileira quanto para a literatura, do contrário, não fosse o uso de sua língua feroz não teríamos sabido dos bastidores de um Brasil tão distante de nossa realidade.
Gregório de Matos e Guerra, este a quem alguém um dia lhe apelidou de Boca do inferno, soube, como ninguém, pintar a poesia lírica, amorosa, erótica, religiosa, política e filosófica. Sem ele e os seus versos não teríamos o prazer de ler e imaginar um Brasil desta forma, tão rico e alegre, farto de comida ou cheio de problemas sociais:

"Descreve a confusão do festejo do entrudo (Entrudo: forma carnavalesca do Brasil antigo, originário de Portugal)

Soneto

Filhós, fatias, sonhos, mal-assadas,
Galinhas, porco, vaca, e mais carneiro,
Os perus em poder do Pasteleiro,
Esguichar, deitar pulhas, laranjadas.
Enfarinhar, pôr rabos, dar risadas,
Gastar para comer muito dinheiro,
Não ter mãos a medir o Traverneiro,
Com réstias de cebolas, dar pancadas.
Das janelas com tanhos dar nas gentes,
A buzina tanger, quebrar panelas,
Querer em um só dia comer tudo
Não perdoar arroz, nem cuscuz quente,
Despeijar pratos, e alimpar tigelas,
Estas as festas são do Santo Entrudo."

Pondo os olhos primeiramente na sua cidade, conhece que os Mercadores são o primeiro móvel da ruína, em que arde pelas mercadorias inúteis e enganosas.

Soneto

Triste Bahia! oh quão desemelhante
Estás, e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vejo eu já, tu a mi abuntante.
A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocado, e tem trocado
Tanto negócio, e tanto negociante.
Deste em dar tanto açucar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.
Oh se quisera Deus, que de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!"

*Obs: Todos os trechos que aqui estão em negrito conservou-se a ortografia da época.